Thursday, May 7, 2009

Mosaico

Num dia frio de Novembro, quando o inverno começava a mostrar-se presente, Clarice acordou sentindo-se estranhamente feliz.
Levantou-se da cama, como fazia todos os dias, abria as cortinas e chegava ao lado de Vito, acordando-o com um beijo. Ele então abria um sorriso com os olhos ainda cerrados e, quando não se levantava num impulso só, agarrava a esposa e os dois riam enquanto se amavam no começo do dia.
Mas aquele dia era diferente. Vito não agarrou Clarice, apenas abriu os olhos após o beijo que ela lhe dera e disse:
- Hoje é um dia especial.
- É mesmo? - disse Clarice, curiosa - Por que ?
- Não sei explicar. Estou sentindo algo diferente.
Ela, então, colocou seu robe de seda enquanto Vito se levantava. Desceram juntos as escadas de madeira nobre e foram para a mesa da copa, onde um café da manhã suntuoso era servido todas as manhãs.
Clarice não quis comer muito. Estava sem fome. Ao contrário de Vito, que devorava os pães, o bolo, sucos, café e leite.
- Nunca vi tanto apetite, meu Deus... - dizia ela, com um sorriso embasbacado.
Vito sorria com a boca cheia, como um típico italiano.
Depois do café, Clarice pensou em ligar para Sofia, mas antes de chegar ao telefone, sentiu uma dor estranha. Parou no mesmo lugar, colocou a mão esquerda na parede para segurar-se, pois não era uma dor comum. Era uma pontada. Algo que nunca havia sentido antes. Uma contração.
Seus 8 meses e meio de gravidez deixavam evidente o milagre da vida que em pouco tempo começaria por si só. E ali, entre a copa e o escritório, deu-se o aviso primeiro.
- Opa... - disse Clarice baixinho, conversando com o bebê - o que foi isso, han?
Sorriu mais uma vez e adiantou-se até o escritório. Ligou para Sofia que lhe atendeu prontamente.
- Oi, minha linda! Como vai? Sonhei com você essa noite...
- Vou bem e você? Sonhou? E foi bom?
- Claro que sim! Vi você com Vito nos braços... - disse Sofia num tom terno e quase angelical.
- Oun... Vito me disse que hoje era um dia especial. Que não sabia explicar, mas que sentia.
- É mesmo? Vito é cheio de "sentir" as coisas!
E as duas riram. Papearam mais um pouco e Clarice resolveu subir e tomar um banho.
Ao apoiar-se nos braços da cadeira para levantar-se, mais uma contração tomou-lhe os movimentos. E dessa vez, um pouco mais forte.
Ela começou a preocupar-se e então chamou pelo marido num estampido só:
- Vito!
Ele veio rápido, até meio correndo. Veio com os olhos ávidos por saber do que se tratava tal urgência.
- O que foi, Clarice?!
- Acho que chegou a hora - disse ela assustada.
- Hora? Que hora?
Clarice o olhou fixamente e ele logo entendeu.
- Meu Deus! - Vito foi até ela, a ajudou a levantar enquanto ela sentia a pressão de mais uma contração vindo de seu ventre.
- Aaaaaaaii!
Clarice cerrou os dentes procurando amenizar a dor, ou dissipá-la. Vito a levou para o quarto, tentou duas vezes discar algum número, mas tremia e sua cabeça não sabia em quê pensar. Discou o número do irmão de uma vez, sem nem pensar demais para lembrar a combinação. Michael atendeu.
- Alô?
- Michael!
- Vito?
- Michael, não sei o que fazer.. Clarice está com contrações... Estou tão nervoso.. não consigo me lembrar o telefone da parteira. Não consigo pensar direito, para falar a verdade. Mande Sofia pra cá.
- Calma, muita calma, meu irmão. Fique tranqüilo. Sofia chegará aí o mais rápido possível e eu ligarei para a parteira. Fique calmo.
- Obrigado, Mike. Obrigado!
E Vito desligou. Nem notou a frieza com que seu irmão havia se proposto a ajudar, ligando para a parteira e mandando Sofia acompanhar a amiga e cunhada.
Momentos de alegria e frustração se contrastavam numa mesma família, entre irmãos, em simples palavras.
Clarice soltou um grito assustando-se e assustando ao marido. Era um grito que vinha de dentro, muito dentro e que doía feliz e lindamente. Ambos se olharam e tentaram rir. Estavam nervosos. Vito deu a mão à esposa, beijou a aliança dela. Clarice apertava a mão do marido cada vez mais e ele permaneceu ao lado da cama, até que ouviu uma voz vindo do andar debaixo.
- Clarice? Vito?
Era Sofia, que chegara afoita em 20 minutos depois que Vito havia telefonado o irmão.
- Sofia chegou, meu amor - ele tentava acalmar a esposa.
E ela subiu as escadas o mais rápido que pôde.
- Clarice!
Correu até a cama, e do outro lado, beijou a testa da amiga, sorrindo-lhe. Àquela altura, as contrações de Clarice já haviam aumentado. Sua respiração ficava cada vez mais ofegante e o suor começava a escorrer por suas têmporas.
- Sofia.. – disse Clarice com os olhos cheios d’água.
- Shhhh.. fique quietinha, não pode se exaltar!
Sofia enxugou o suor da testa de Clarice, tirou seu tailleur marrom perfeitamente modelado em sua cintura fina, arregaçou as mangas da blusa branca e prendeu o cabelo, deixando alguns fios, milimetricamente, caírem sobre sua face.
35 minutos contados no relógio, por Vito, se passaram até que a parteira tocasse a campainha da casa. Ele, então, desceu correndo e quase caiu ao chegar perto da porta. A empregada havia encerado demais o chão, o deixando escorregadio. Vito se agarrou à maçaneta e abriu a porta.
- Já era em tempo!
E arrastou a parteira para o quarto nem mesmo vendo que ela havia trazido sua filha mais nova para ajudá-la.
Chegando no andar de cima, Clarice viu aquela mulher entrar com a menina no quarto e seus olhos ficaram maiores, numa expressão de medo e nervosismo, não entendendo muito bem o que se sucederia ali.
Sofia cumprimentou a parteira e esta foi tirando seu chapéu e seu casaco. Os deixou em cima da cadeira, em frente à penteadeira.
A menina chegou perto de Clarice e encantou-se com seu rosto. Deu um beijo na bochecha dela e disse, calmamente:
- Não precisa ter medo. Já já vai ficar tudo bem.
Sorriu mostrando a falta do dente da frente e a inocência de seus 7 anos.
- Vamos trazer este menino ao mundo então?! – disse a parteira abrindo um sorriso hilariante, que fazia suas bochechas quase cobrirem os olhos.
Ela era uma mulher grande, com mãos grandes e profundos olhos azuis. Seus cabelos eram grisalhos e suas bochechas vermelhas. Era uma figura adorável, o que acalmou Clarice.
- Você tem cheiro de amaciante...
E a mulher soltou uma gargalhada, fazendo Clarice sorrir e olhar para Sofia, que também ria.
- Você é o que dela ? – perguntou à amiga.
- Sou cunhada e a melhor amiga...
- Han.. tudo bem. Pode ficar para ajudar. Mas, talvez seja melhor o pai esperar lá fora.
Vito parecia concentrado em fitar o chão, sentado na poltrona felpuda ao lado da porta do closet, quando a parteira lhe dirigiu a palavra.
- Hein? Ah, claro!
Ele foi até a mulher, lhe deu um profundo beijo e saiu.
A porta do quarto se fechou e Vito resolveu sentar-se ao lado dela. Clarice então, sentiu a contração mais forte em todas as que já haviam lhe acontecido. Agora os espaços entre cada contração diminuíam e seu coração batia forte. Ela se perguntava se tudo correria bem, se ela viveria para ver o filho, se ele estava bem, se Vito estava bem ou gastando o carpete do corredor, andando de um lado para o outro... Era um turbilhão de idéias.
A parteira foi muito educada e delicada com Clarice. Tinha percebido o medo dela.
Sentiu a dilatação em seu ventre e disse:
- É... a hora chegou. Vamos fazer força, Clarice.
A filha dela molhava pedaços de pano e passava sobre o rosto de Clarice. Sofia segurou mais forte a mão da amiga.
- Força, Clarice.. força!
E começou a contar 10 segundos quando ela fazia força. A parteira contava junto e observava como as coisas corriam com Clarice.
- Mais força, menina, mais força...
E ela fazia mais força, até quase desfalecer.
A filha da parteira deu uma mão para que ela segurasse e ali ficou, ao lado dela, dando força como podia.
- Me desculpe se eu apertar sua mão muito forte, tá? – disse Clarice esboçando um sorriso à menina.
- Não tem problema... – disse ela também sorrindo.
E mais uma contração tomou o sorriso de Clarice. Dessa vez, ela gritou mais alto e clamou:
- Pelo amor de Deus, acabe com isso!!
Ela mordia os lábios, levava sua cabeça para trás e esperava a cada momento, que a dor passasse.
- Agora você vai fazer uma força bem grande, tudo bem? Ele está vindo... – disse a parteira.
Ela e Sofia balançavam a cabeça afirmativamente como se recebessem ordens de um superior.
As duas se olharam e assentiram com a cabeça, determinando o momento certo para começar a “grande força”.
- 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10, continue fazendo força, Clarice, ele está saindo!
E ela continuou a fazer força, e força, e mais força, até que todas dentro do quarto silenciaram-se ao ouvirem uma nova voz.
Uma voz que gritava, avisando que havia chegado. Uma voz que vinha de um ser pequeno e novo, inocente e indefeso. A voz do bebê de Clarice se fazia presente e forte. Ele havia chegado.
Vito estava sentado no corredor, com a cabeça apoiada nos joelhos flexionados. Num movimento brusco, levantou a cabeça e se pôs de pé. Pegou na maçaneta da porta e então a abriu.
Não via nada mais. Via Clarice apenas, e seu filho, enrolado num pano branco, no colo dela. Via eles se olharem, se admirarem, se apresentarem.
Ela tinha seu dedo indicador dentro da pequena mão do bebê. Ele segurava seu dedo com vivacidade, como se trocasse um aperto de mão em um importante negócio.
Vito sentiu seu rosto esquentar e seus olhos ficarem embaçados, cheios d’água. Ele perdeu a respiração por um momento e foi indo lentamente até a cama. Sentou-se ao lado da esposa e beijou-lhe apaixonadamente, olhando em seguida para o bebê.
- Vito... mio piccolo bambino... mio bambino... – disse o pai, admirado com aquela criaturinha de olhos curiosos.
Ele pegou o filho no colo e levantou-se da cama. Foi até janela e admirou o rosto parecido com o seu. Os mesmos olhos castanhos, o mesmo queixo.
- Ele tem seus lábios, Clarice...
E ela sorriu quase involuntariamente, mas deixando lágrimas correrem pelo seu rosto, misturando-se ao suor de um trabalho de parto sofrido.
Sofia estava sentada na poltrona em que Vito havia se sentado antes de sair do quarto. Ela respirava pausadamente. Sua vida passava por sua cabeça. Todos os momentos. Tudo.
Clarice olhou para a amiga e tentou entender e desvendar o que se passava.
- Sofia...? – chamou com a voz doce e suave.
- Hum?
- Venha cá. Não quer pegar seu afilhado no colo?
- Claro... claro. – fechou os olhos e levantou-se, abrindo-os.
Ela foi até Vito e, com o queixo em seu ombro esquerdo, disse baixinho:
- Deixe eu cumprimentar meu afilhado, papai. Não monopolize...
E os dois riram.
Vito passou o filho com todo o cuidado possível e impossível e Sofia finalmente o tomou nos braços. Ficou paralisada e imaginou-se no lugar de Clarice.
Ela abraçou o bebê, tomando cuidado para não sufocá-lo (demais). Segurou-o de frente para si e disse:
- Você é lindo. E eu te amo. Ouviu? – disse sorrindo.
A parteira havia limpado tudo e Vito estava abraçado à mulher. A menina, filha, já na porta, olhou para Clarice, que a olhou de volta. Ela voltou correndo e deu um demorado beijo na testa de Clarice, que retribuiu o gesto e disse:
- Até mais, lindinha – deu uma piscadela sorrindo.
Então, mãe e filha foram embora e agora, a vida começava.

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