Sunday, May 3, 2009

Para desencargo (ou mais encargo ainda) de consciência...

Estava frio, e Sofia acordou no meio da noite, com uma sensação estranha. Andou, andou, e começou a sentir a calcinha molhada, como se estivesse 'naqueles dias', o que lhe era estranho, e bem improvável, já que ela mal enxergava os pés com aquela barriga de duros sete meses. Correu para o banheiro, e aquela mancha pequena e ainda fresca de sangue na roupa íntima a intrigou. Tentou ligar para o médico, mas foi mal sucedida. Foi então, que pôs-se a procurar Michael pela casa. E lá estava ele naquele maldito escritório, assinando freneticamente uma bateria de papéis. Ao adentrar o templo de Michael, ela pisou com cuidado, como quem pisa num chão crivado de cacos. Eram os cacos da noite passada, quando discutiram aos berros sobre a vida que estavam levando um ao lado do outro. Quase se juraram de morte, até o pequeno 'Michael' entrou no mérito desta palavra fétida. Mas já que não morreram, ela estava ali, sentindo como se seu filho estivesse para morrer.
- Michael? - disse ela, com os olhos fixos na janela.
- Sim? - respondeu, olhando para os papéis, fingindo não querer vê-la.
- Eu... estou sangrando... - e ela tentou olhar para ele, desesperada.
- Você está o quê? O quê, Sofia Vivaldi Corleone? - e ele se levantou, com os olhos arregalados, num misto de susto e ódio.
- Sangrando. Me ajude, por favor. - e as lágrimas contornavam seus olhos verdes, e caíam sobre sua pele aveludada, em direção à boca.
- O que você fez, sua infeliz? O que você fez com a nossa criança? - gritou.
- Eu não fiz nada, pelo amor de Deus!
- Não fale no nome de Deus! Ele não tem culpa de você ter matado o meu filho, como disse que faria.
- Você não pode acreditar nisso, Michael! - e foi cortada por um longo e duradouro tapa na face, trêmula.
- Aonde eu estava com a cabeça quando resolvi escolher você como mãe dos meus filhos? Porca miséria! - e começou a esbofeteá-la, odioso, sedento de vingança.
E foram minutos à fio de tortura, até largá-la num canto obscuro, desacordada. Neste exato momento, o sangue começou a escorrer por suas pernas e encharcar o carpete azul. Michael, olhando, se viu encurralado, arrependido. Correu e chamou por Clarice, que na época estava morando com Vito em sua casa, enquanto reformava a sua. Clarice e Vito correram, e ao ver Sofia naquele estado, pasmaram.
- Mas que diabos você fez com ela? - berrou Clarice, como se um punhal tivesse sindo enfincado em seu seio.
- Michael, como você pôde? Precisamos levá-la ao hospital agora! - exclamou Vito, demasiadamente desapontado com o irmão. E desceu as escadas correndo, pôs o casaco, e ligou o carro, enquanto Michael e Clarice carregavam Sofia, com a camisola branca tingida de um vermelho quente e doloroso. Estava tão inchada, que nem os olhos era capaz de abrir.
E ao hospital a levaram... Michael sapateava tanto no corredor, que quase desgastou todo o assoalho. Já era tarde, até que o médico saiu da sala de cirurgia, e tocou o ombro de Michael.
- Meus pêsames. - e partiu, em direção ao infinito escuro, que supostamente seria a ala médica.
Michael pôs os pés para dentro do quarto, onde já estava Clarice com um terço, rezando. Olhou nitidamente para a cama, e preferia não ter olhado. Sofia estava com a pela arroxeada, arranhada, cortada. Sem a barriga. Sedada. Não havia berço ao lado da cama dela. O bebê havia morrido.
Vito assombreou o irmão, adentrando o quarto quase que no mesmo momento. Abaixou a cabeça, chocado. Michael foi até os pés da cama e arrancou o laudo médico. Nele constavam as seguintes palavras que Michael jamais esquecerá:
"Constata-se que houve aborto espontâneo através de morte cerebral fetal, em decorrência dos ferimentos sofridos pela mãe, a paciente Sofia Vivaldi Corleone. Vale relevar que o sangramento notado antes, não passava de uma disfunção hormonal presente na mesma."
Ele saiu daquele quarto, e o irmão foi atrás, sabendo que ele seria capaz de cometer uma sandice.
E foi dito e feito, Michael arrancou o canivete de dentro do bolso, e, correndo, o abriu, e o levou bem perto da jugular. Foi interrompido.
Longos meses assombrariam a mansão Corleone desde aquela data. Até que se passasse um ano, Michael não tocaria em Sofia, nem falaria de filhos. Mesmo que tivesse que tocar outras mulheres... Sofia permaneceu intacta, como uma santa moderna, quase que guardada numa caixa de louça. A cama também permanecia intacta. Digna só de um fraco 'boa noite', como quem vive para não viver.
E então... para desencargo, ou mais encargo ainda?

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