E ao olhar aquele sorriso, o barulho da xícara no pires foi inevitável. A xícara também estava embasbacada com aquela beleza, com aquele rostinho redondo, e com aquele ventre robusto, com uma criança linda dentro. Mas Sofia lembrava –se bem de toda a sua falta de atenção ao vê-la passar correndo pela porta de casa. Ficava ali durante horas, observando... Aqueles olhos azuis, ah! Pareciam os seus... E aqueles sapatinhos de verniz combinando perfeitamente com o vestido de seda pura floral? Clarice não era qualquer criança... Mas era o anjo de Sofia. Mesmo quando os dias se fazem frios demais na Sicília... Mesmo quando Sofia os faz frios... Ela vem, e rabisca um enorme e intenso sol. São como irmãs. E se o sangue não o fez, elas o fizeram.
- Sofia! – sorriu, chamando atenção em meio às lembranças.
- Mas o que é que você quer? – respondeu Sofia, assustada, com a cara mais marrenta do mundo.
- Ele chutou! – e aquele sorriso doce se abriu tão denso pros seus olhos ainda amargos, que não hesitou, e tocou aquela esfera cheia de amor que era a sua barriga. Seus olhos se encheram d’água. Vito estava dando seus primeiros sinais de vida...
- Ele não vai demorar muito pra nascer...
E ela acariciava sua pele por cima do vestido claro e com o suave cheiro de lavanda. Aquilo lhe fazia lembrar de sua mãe, de sua infância, de Sofia.
- Venha cá! - exclamou Clarice - Venha sentir ele chutando!
Sofia, meio encabulada, sentou-se ao lado da amiga e posicionou sua mão na barriga dela. Recebendo o gentil toque das mãos brancas de Clarice, viajou a outra dimensão, imaginando como seria aquele bebê.
- Está sentindo? - sorria vividamente
- Estou... estou! - e Sofia abriu um largo sorriso apertando a mão da amiga.
Ela então, voltou ao seu lugar e no exato momento em que encostou seus lábios pintados de vermelho na xícara de chá, pensou na sua vida e na vida com Clarice.
- Você anda muito pensativa, Sofia - comentou Clarice.
A outra, então, levantando os olhos, tirou a xícara da boca e ainda segurando-a em seus dedos bem desenhados, disse:
- Ando lembrando muito de quando éramos crianças. Ah, Clarice ! Você é minha amiga de infância... temos uma vida juntas. Isso é surreal !
Clarice a chamou novamente para sentar-se ao seu lado.
- Você é minha melhor amiga. Desde sempre. Para sempre ! - disse ela com os olhos brilhantes e com o sorriso radiante.
Um longo abraço era tudo que tinham naquele momento. Sofia pensava em Vito como se fosse seu próprio filho. O filho que ela ainda não teve. O filho que ela poderia ter tido se Michael não fosse tão cruel. Se ela não tivesse sido tão cruel. Eis que Sofia põe-se a chorar diante das xícaras e do terno abraço de Clarice.
- Sofia? Meu bem? – a voz grossa percorre a sala, e faz com que Sofia enxugue as lágrimas com a manga do cardigã vermelho. Era Michael, que chegava sedento pela mulher. O mesmo Michael que lhe dava flores, que lhe esbofeteava, que lhe dava prazer, e que lhe dava amor. O Michael com quem havia se casado, com quem prometeu viver até o fim de seus dias.
- Michael? – ela olhava com nervosismo em direção a porta. E ele apareceu, largou as chaves e a arma protegida por um estojo de couro em cima da mesa e a deu um beijo terno, daqueles em que os olhos se fecham e os lábios se procuram, delicadamente.
Michael deu um beijo na testa de Clarice, e pegou em sua barriga, com os olhos brilhantes.
- E como vai esse nosso garotão? - sorriu, e olhou para Sofia, como quem cobra algo.
- Ah, vai bem! Estava há alguns minutos dando uns chutes na madrinha. Mas com o padrinho chegando, se aquietou.
- Ele deve ter sentido que eu não brinco em serviço! – gargalhou baixinho – Sofia, você me prepara um banho depois? Temos muito o que conversar...
- Eu acho que vou até embora para que a conversa de vocês tenha uma melhor fluência! – exclamou Clarice, cínica, segurando o riso.
- Não precisa, querida. Daqui a pouco Vito chega de viagem, e passa para te apanhar. Aí os assuntos fluem em diferentes casas. – e o riso deu-se explícito entre Michael, Sofia e Clarice.
- Ah, meu bem, Clarice já escolheu o nome do bebê.
- Já? – Michael olhou para Sofia, tentando se fazer de surpreso.
- Já! Vai ser o nome do pai. – respondeu Clarice.
- Ah, mas que maravilha! Quando meu filho nascer, quero que tenha o meu nome também. – disse Michael, olhando bem nos olhos de Sofia, que tratou de desatar o nó de sua gravata enquanto conversavam.
Percebendo o notável desconforto da amiga, Clarice se colocou a arrumar a bolsa, colocar seu cachecol e seu chapéu.
- Vou esperar o Vito na ante-sala, se vocês não se importam - disse com o rosto terno e pedinte.
- Está tudo bem, querida - Michael deu um sorriso e veio novamento beijar a testa de Clarice.
- Eu te acompanho até lá - disse Sofia.
Clarice enlaçou seu braço no da amiga e comentou baixinho, enquanto as duas caminhavam pelo corredor:
- Essa situação anda ficando cada vez mais complicada, não acha ?
- Acho - Sofia disse pausadamente - Claro que acho. Mas tenho medo, Clarice.
- De quê ?
As duas pararam em frente ao sofá embaixo da janela na ante-sala, perto da entrada.
- Não se lembra de tudo que aconteceu há 1 ano atrás ? - perguntou Sofia parando e distanciando seu olhar ao nada.
- É claro que me lembro - Clarice falou engasgada enquanto abotoava as luvas - Mas tudo vai ficar bem.
Procurando os olhos da amiga, ela levou a mão ao rosto de Sofia, levantando-o.
- Ei... não fique assim.
Uma lágrima rolou dos verdes olhos cerrados de Sofia.
- Oh, Deus... - e Clarice a abraçou o mais forte que pôde. Sofia agarrou-se no abraço, e ali, por um momento, sentiu-se ancorada. Chorou mais um pouco e Clarice, tirando um lenço da bolsa, foi enxugando seu rosto.
- Michael te ama. E o filho de vocês será o fruto desse amor, Sofia... Ele vai saber dar tempo ao tempo. É essa estupidez de querer apressar tudo que o faz errar tanto.
Enquanto Clarice pronunciava suas últimas palavras, a luz dos faróis do carro de Vito invadia a ante-sala.
- Ele chegou... – disse Sofia, em tom de desespero.
- Oh, ele chegou! – respondeu Clarice, no mesmo tom, só que com uma pitada de felicidade.
Vito entrou, se agarrou à barriga da esposa, e a cobriu de beijos. Resultado de quatro longos meses de viagem mundo à fora. Resultado de quatro longos meses em que Clarice chorou de saudade e medo. Medo de nunca mais ver Vito, medo de que ele pudesse ser executado antes que ela o visse.
- Minha linda! – exclamou Vito com os olhos cheios d’água – Mas que saudade de você! E do nosso filho!
- Mas agora estamos todos aqui, meu amor. Graças a Deus! – e os dois se entrelaçaram num duradouro beijo.
- Vito! – disse Michael, ao vir com a gravata recém-tirada nas mãos, sorrindo, contente com a volta do irmão. E eles se abraçaram como costumavam fazer, de um jeito peculiar, mas amoroso. Porque os leves tapas nas costas significavam muito mais que gestos. Eram gestos de amor e de carinho entre irmãos que se viam desde o acordar, até o fim do dia. De irmãos que compartilhavam sua vida com duas mulheres, duas amigas, duas irmãs.
Mas sempre viveram momentos diferentes, apesar da proximidade. Michael e Vito, agora, mais do que nunca, viviam momentos diferentes.
- Olá, Vito. – se aproximou Sofia, sorrindo, e abraçando-o, notando que a paz estava quase que reestabelecida. Com Vito de volta, Michael ficaria um pouco mais equilibrado, porque ele era sua consciência, seu porto.
- Olá, querida. Como está? – e ele a olhou nos olhos de um jeito como quem sabe que nada está bem.
- Ah, eu e Michael estamos bem...
- Se bem que não era pra ser só dois, não é? – retrucou Michael, enquanto acendia seu charuto, com um sorriso de canto de boca.
- Veja bem, Michael, era para ser três, se você não tivesse escolhido outros meios, e você sabe disso. – disse Sofia, enquanto se deslocava para o quarto, a fim de buscar alguns pertences de Clarice, que por ventura tenham sido esquecidos.
E ele a trancou. A segurou pelo braço e a olhou com um olhar tão profundo... Um olhar de dó, e de dor também. De perda.
E Clarice e Vito foram embora para casa, sem nada a declarar. Entraram no carro e partiram na direção dos portões negros e do muro de homens armados, a fim de sair da Fortaleza Corleone.
[continua]
Saturday, May 2, 2009
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