Thursday, May 7, 2009

Mosaico

Num dia frio de Novembro, quando o inverno começava a mostrar-se presente, Clarice acordou sentindo-se estranhamente feliz.
Levantou-se da cama, como fazia todos os dias, abria as cortinas e chegava ao lado de Vito, acordando-o com um beijo. Ele então abria um sorriso com os olhos ainda cerrados e, quando não se levantava num impulso só, agarrava a esposa e os dois riam enquanto se amavam no começo do dia.
Mas aquele dia era diferente. Vito não agarrou Clarice, apenas abriu os olhos após o beijo que ela lhe dera e disse:
- Hoje é um dia especial.
- É mesmo? - disse Clarice, curiosa - Por que ?
- Não sei explicar. Estou sentindo algo diferente.
Ela, então, colocou seu robe de seda enquanto Vito se levantava. Desceram juntos as escadas de madeira nobre e foram para a mesa da copa, onde um café da manhã suntuoso era servido todas as manhãs.
Clarice não quis comer muito. Estava sem fome. Ao contrário de Vito, que devorava os pães, o bolo, sucos, café e leite.
- Nunca vi tanto apetite, meu Deus... - dizia ela, com um sorriso embasbacado.
Vito sorria com a boca cheia, como um típico italiano.
Depois do café, Clarice pensou em ligar para Sofia, mas antes de chegar ao telefone, sentiu uma dor estranha. Parou no mesmo lugar, colocou a mão esquerda na parede para segurar-se, pois não era uma dor comum. Era uma pontada. Algo que nunca havia sentido antes. Uma contração.
Seus 8 meses e meio de gravidez deixavam evidente o milagre da vida que em pouco tempo começaria por si só. E ali, entre a copa e o escritório, deu-se o aviso primeiro.
- Opa... - disse Clarice baixinho, conversando com o bebê - o que foi isso, han?
Sorriu mais uma vez e adiantou-se até o escritório. Ligou para Sofia que lhe atendeu prontamente.
- Oi, minha linda! Como vai? Sonhei com você essa noite...
- Vou bem e você? Sonhou? E foi bom?
- Claro que sim! Vi você com Vito nos braços... - disse Sofia num tom terno e quase angelical.
- Oun... Vito me disse que hoje era um dia especial. Que não sabia explicar, mas que sentia.
- É mesmo? Vito é cheio de "sentir" as coisas!
E as duas riram. Papearam mais um pouco e Clarice resolveu subir e tomar um banho.
Ao apoiar-se nos braços da cadeira para levantar-se, mais uma contração tomou-lhe os movimentos. E dessa vez, um pouco mais forte.
Ela começou a preocupar-se e então chamou pelo marido num estampido só:
- Vito!
Ele veio rápido, até meio correndo. Veio com os olhos ávidos por saber do que se tratava tal urgência.
- O que foi, Clarice?!
- Acho que chegou a hora - disse ela assustada.
- Hora? Que hora?
Clarice o olhou fixamente e ele logo entendeu.
- Meu Deus! - Vito foi até ela, a ajudou a levantar enquanto ela sentia a pressão de mais uma contração vindo de seu ventre.
- Aaaaaaaii!
Clarice cerrou os dentes procurando amenizar a dor, ou dissipá-la. Vito a levou para o quarto, tentou duas vezes discar algum número, mas tremia e sua cabeça não sabia em quê pensar. Discou o número do irmão de uma vez, sem nem pensar demais para lembrar a combinação. Michael atendeu.
- Alô?
- Michael!
- Vito?
- Michael, não sei o que fazer.. Clarice está com contrações... Estou tão nervoso.. não consigo me lembrar o telefone da parteira. Não consigo pensar direito, para falar a verdade. Mande Sofia pra cá.
- Calma, muita calma, meu irmão. Fique tranqüilo. Sofia chegará aí o mais rápido possível e eu ligarei para a parteira. Fique calmo.
- Obrigado, Mike. Obrigado!
E Vito desligou. Nem notou a frieza com que seu irmão havia se proposto a ajudar, ligando para a parteira e mandando Sofia acompanhar a amiga e cunhada.
Momentos de alegria e frustração se contrastavam numa mesma família, entre irmãos, em simples palavras.
Clarice soltou um grito assustando-se e assustando ao marido. Era um grito que vinha de dentro, muito dentro e que doía feliz e lindamente. Ambos se olharam e tentaram rir. Estavam nervosos. Vito deu a mão à esposa, beijou a aliança dela. Clarice apertava a mão do marido cada vez mais e ele permaneceu ao lado da cama, até que ouviu uma voz vindo do andar debaixo.
- Clarice? Vito?
Era Sofia, que chegara afoita em 20 minutos depois que Vito havia telefonado o irmão.
- Sofia chegou, meu amor - ele tentava acalmar a esposa.
E ela subiu as escadas o mais rápido que pôde.
- Clarice!
Correu até a cama, e do outro lado, beijou a testa da amiga, sorrindo-lhe. Àquela altura, as contrações de Clarice já haviam aumentado. Sua respiração ficava cada vez mais ofegante e o suor começava a escorrer por suas têmporas.
- Sofia.. – disse Clarice com os olhos cheios d’água.
- Shhhh.. fique quietinha, não pode se exaltar!
Sofia enxugou o suor da testa de Clarice, tirou seu tailleur marrom perfeitamente modelado em sua cintura fina, arregaçou as mangas da blusa branca e prendeu o cabelo, deixando alguns fios, milimetricamente, caírem sobre sua face.
35 minutos contados no relógio, por Vito, se passaram até que a parteira tocasse a campainha da casa. Ele, então, desceu correndo e quase caiu ao chegar perto da porta. A empregada havia encerado demais o chão, o deixando escorregadio. Vito se agarrou à maçaneta e abriu a porta.
- Já era em tempo!
E arrastou a parteira para o quarto nem mesmo vendo que ela havia trazido sua filha mais nova para ajudá-la.
Chegando no andar de cima, Clarice viu aquela mulher entrar com a menina no quarto e seus olhos ficaram maiores, numa expressão de medo e nervosismo, não entendendo muito bem o que se sucederia ali.
Sofia cumprimentou a parteira e esta foi tirando seu chapéu e seu casaco. Os deixou em cima da cadeira, em frente à penteadeira.
A menina chegou perto de Clarice e encantou-se com seu rosto. Deu um beijo na bochecha dela e disse, calmamente:
- Não precisa ter medo. Já já vai ficar tudo bem.
Sorriu mostrando a falta do dente da frente e a inocência de seus 7 anos.
- Vamos trazer este menino ao mundo então?! – disse a parteira abrindo um sorriso hilariante, que fazia suas bochechas quase cobrirem os olhos.
Ela era uma mulher grande, com mãos grandes e profundos olhos azuis. Seus cabelos eram grisalhos e suas bochechas vermelhas. Era uma figura adorável, o que acalmou Clarice.
- Você tem cheiro de amaciante...
E a mulher soltou uma gargalhada, fazendo Clarice sorrir e olhar para Sofia, que também ria.
- Você é o que dela ? – perguntou à amiga.
- Sou cunhada e a melhor amiga...
- Han.. tudo bem. Pode ficar para ajudar. Mas, talvez seja melhor o pai esperar lá fora.
Vito parecia concentrado em fitar o chão, sentado na poltrona felpuda ao lado da porta do closet, quando a parteira lhe dirigiu a palavra.
- Hein? Ah, claro!
Ele foi até a mulher, lhe deu um profundo beijo e saiu.
A porta do quarto se fechou e Vito resolveu sentar-se ao lado dela. Clarice então, sentiu a contração mais forte em todas as que já haviam lhe acontecido. Agora os espaços entre cada contração diminuíam e seu coração batia forte. Ela se perguntava se tudo correria bem, se ela viveria para ver o filho, se ele estava bem, se Vito estava bem ou gastando o carpete do corredor, andando de um lado para o outro... Era um turbilhão de idéias.
A parteira foi muito educada e delicada com Clarice. Tinha percebido o medo dela.
Sentiu a dilatação em seu ventre e disse:
- É... a hora chegou. Vamos fazer força, Clarice.
A filha dela molhava pedaços de pano e passava sobre o rosto de Clarice. Sofia segurou mais forte a mão da amiga.
- Força, Clarice.. força!
E começou a contar 10 segundos quando ela fazia força. A parteira contava junto e observava como as coisas corriam com Clarice.
- Mais força, menina, mais força...
E ela fazia mais força, até quase desfalecer.
A filha da parteira deu uma mão para que ela segurasse e ali ficou, ao lado dela, dando força como podia.
- Me desculpe se eu apertar sua mão muito forte, tá? – disse Clarice esboçando um sorriso à menina.
- Não tem problema... – disse ela também sorrindo.
E mais uma contração tomou o sorriso de Clarice. Dessa vez, ela gritou mais alto e clamou:
- Pelo amor de Deus, acabe com isso!!
Ela mordia os lábios, levava sua cabeça para trás e esperava a cada momento, que a dor passasse.
- Agora você vai fazer uma força bem grande, tudo bem? Ele está vindo... – disse a parteira.
Ela e Sofia balançavam a cabeça afirmativamente como se recebessem ordens de um superior.
As duas se olharam e assentiram com a cabeça, determinando o momento certo para começar a “grande força”.
- 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10, continue fazendo força, Clarice, ele está saindo!
E ela continuou a fazer força, e força, e mais força, até que todas dentro do quarto silenciaram-se ao ouvirem uma nova voz.
Uma voz que gritava, avisando que havia chegado. Uma voz que vinha de um ser pequeno e novo, inocente e indefeso. A voz do bebê de Clarice se fazia presente e forte. Ele havia chegado.
Vito estava sentado no corredor, com a cabeça apoiada nos joelhos flexionados. Num movimento brusco, levantou a cabeça e se pôs de pé. Pegou na maçaneta da porta e então a abriu.
Não via nada mais. Via Clarice apenas, e seu filho, enrolado num pano branco, no colo dela. Via eles se olharem, se admirarem, se apresentarem.
Ela tinha seu dedo indicador dentro da pequena mão do bebê. Ele segurava seu dedo com vivacidade, como se trocasse um aperto de mão em um importante negócio.
Vito sentiu seu rosto esquentar e seus olhos ficarem embaçados, cheios d’água. Ele perdeu a respiração por um momento e foi indo lentamente até a cama. Sentou-se ao lado da esposa e beijou-lhe apaixonadamente, olhando em seguida para o bebê.
- Vito... mio piccolo bambino... mio bambino... – disse o pai, admirado com aquela criaturinha de olhos curiosos.
Ele pegou o filho no colo e levantou-se da cama. Foi até janela e admirou o rosto parecido com o seu. Os mesmos olhos castanhos, o mesmo queixo.
- Ele tem seus lábios, Clarice...
E ela sorriu quase involuntariamente, mas deixando lágrimas correrem pelo seu rosto, misturando-se ao suor de um trabalho de parto sofrido.
Sofia estava sentada na poltrona em que Vito havia se sentado antes de sair do quarto. Ela respirava pausadamente. Sua vida passava por sua cabeça. Todos os momentos. Tudo.
Clarice olhou para a amiga e tentou entender e desvendar o que se passava.
- Sofia...? – chamou com a voz doce e suave.
- Hum?
- Venha cá. Não quer pegar seu afilhado no colo?
- Claro... claro. – fechou os olhos e levantou-se, abrindo-os.
Ela foi até Vito e, com o queixo em seu ombro esquerdo, disse baixinho:
- Deixe eu cumprimentar meu afilhado, papai. Não monopolize...
E os dois riram.
Vito passou o filho com todo o cuidado possível e impossível e Sofia finalmente o tomou nos braços. Ficou paralisada e imaginou-se no lugar de Clarice.
Ela abraçou o bebê, tomando cuidado para não sufocá-lo (demais). Segurou-o de frente para si e disse:
- Você é lindo. E eu te amo. Ouviu? – disse sorrindo.
A parteira havia limpado tudo e Vito estava abraçado à mulher. A menina, filha, já na porta, olhou para Clarice, que a olhou de volta. Ela voltou correndo e deu um demorado beijo na testa de Clarice, que retribuiu o gesto e disse:
- Até mais, lindinha – deu uma piscadela sorrindo.
Então, mãe e filha foram embora e agora, a vida começava.

Sunday, May 3, 2009

Para desencargo (ou mais encargo ainda) de consciência...

Estava frio, e Sofia acordou no meio da noite, com uma sensação estranha. Andou, andou, e começou a sentir a calcinha molhada, como se estivesse 'naqueles dias', o que lhe era estranho, e bem improvável, já que ela mal enxergava os pés com aquela barriga de duros sete meses. Correu para o banheiro, e aquela mancha pequena e ainda fresca de sangue na roupa íntima a intrigou. Tentou ligar para o médico, mas foi mal sucedida. Foi então, que pôs-se a procurar Michael pela casa. E lá estava ele naquele maldito escritório, assinando freneticamente uma bateria de papéis. Ao adentrar o templo de Michael, ela pisou com cuidado, como quem pisa num chão crivado de cacos. Eram os cacos da noite passada, quando discutiram aos berros sobre a vida que estavam levando um ao lado do outro. Quase se juraram de morte, até o pequeno 'Michael' entrou no mérito desta palavra fétida. Mas já que não morreram, ela estava ali, sentindo como se seu filho estivesse para morrer.
- Michael? - disse ela, com os olhos fixos na janela.
- Sim? - respondeu, olhando para os papéis, fingindo não querer vê-la.
- Eu... estou sangrando... - e ela tentou olhar para ele, desesperada.
- Você está o quê? O quê, Sofia Vivaldi Corleone? - e ele se levantou, com os olhos arregalados, num misto de susto e ódio.
- Sangrando. Me ajude, por favor. - e as lágrimas contornavam seus olhos verdes, e caíam sobre sua pele aveludada, em direção à boca.
- O que você fez, sua infeliz? O que você fez com a nossa criança? - gritou.
- Eu não fiz nada, pelo amor de Deus!
- Não fale no nome de Deus! Ele não tem culpa de você ter matado o meu filho, como disse que faria.
- Você não pode acreditar nisso, Michael! - e foi cortada por um longo e duradouro tapa na face, trêmula.
- Aonde eu estava com a cabeça quando resolvi escolher você como mãe dos meus filhos? Porca miséria! - e começou a esbofeteá-la, odioso, sedento de vingança.
E foram minutos à fio de tortura, até largá-la num canto obscuro, desacordada. Neste exato momento, o sangue começou a escorrer por suas pernas e encharcar o carpete azul. Michael, olhando, se viu encurralado, arrependido. Correu e chamou por Clarice, que na época estava morando com Vito em sua casa, enquanto reformava a sua. Clarice e Vito correram, e ao ver Sofia naquele estado, pasmaram.
- Mas que diabos você fez com ela? - berrou Clarice, como se um punhal tivesse sindo enfincado em seu seio.
- Michael, como você pôde? Precisamos levá-la ao hospital agora! - exclamou Vito, demasiadamente desapontado com o irmão. E desceu as escadas correndo, pôs o casaco, e ligou o carro, enquanto Michael e Clarice carregavam Sofia, com a camisola branca tingida de um vermelho quente e doloroso. Estava tão inchada, que nem os olhos era capaz de abrir.
E ao hospital a levaram... Michael sapateava tanto no corredor, que quase desgastou todo o assoalho. Já era tarde, até que o médico saiu da sala de cirurgia, e tocou o ombro de Michael.
- Meus pêsames. - e partiu, em direção ao infinito escuro, que supostamente seria a ala médica.
Michael pôs os pés para dentro do quarto, onde já estava Clarice com um terço, rezando. Olhou nitidamente para a cama, e preferia não ter olhado. Sofia estava com a pela arroxeada, arranhada, cortada. Sem a barriga. Sedada. Não havia berço ao lado da cama dela. O bebê havia morrido.
Vito assombreou o irmão, adentrando o quarto quase que no mesmo momento. Abaixou a cabeça, chocado. Michael foi até os pés da cama e arrancou o laudo médico. Nele constavam as seguintes palavras que Michael jamais esquecerá:
"Constata-se que houve aborto espontâneo através de morte cerebral fetal, em decorrência dos ferimentos sofridos pela mãe, a paciente Sofia Vivaldi Corleone. Vale relevar que o sangramento notado antes, não passava de uma disfunção hormonal presente na mesma."
Ele saiu daquele quarto, e o irmão foi atrás, sabendo que ele seria capaz de cometer uma sandice.
E foi dito e feito, Michael arrancou o canivete de dentro do bolso, e, correndo, o abriu, e o levou bem perto da jugular. Foi interrompido.
Longos meses assombrariam a mansão Corleone desde aquela data. Até que se passasse um ano, Michael não tocaria em Sofia, nem falaria de filhos. Mesmo que tivesse que tocar outras mulheres... Sofia permaneceu intacta, como uma santa moderna, quase que guardada numa caixa de louça. A cama também permanecia intacta. Digna só de um fraco 'boa noite', como quem vive para não viver.
E então... para desencargo, ou mais encargo ainda?

O outro lado...




Para Clarice e Vito

Clarice despediu-se de Sofia ainda com um sorriso nos lábios. As duas foram até a porta e Clarice foi para o carro, onde Vito a esperava. Ela abriu a porta, colocou a bolsa na banco de trás e sentou-se com cuidado ao lado do marido.
Antes que ela fechasse a porta, ele pegou sua mão esquerda e beijou. Ela ficou parada, admirando a cena e lançou um olhar terno ao rosto do marido. Vito acariciou seu rosto e se aproximou, dando um lento e apaixonado beijo na esposa.
- Nossa... mas, quanto amor! - Clarice disse rindo.
- Você nem imagina! - respondeu o marido, também rindo.
Ele abaixou-se um pouco e deu um beijo na barriga, segurando-a com as duas mãos.
- E o garoto? Te deu muito trabalho hoje?
- Que nada... deu alguns chutes para avisar que está quase chegando, mas nada de incomum.
- Que bom, que bom - disse ele, ligando o carro e saindo.
Vito as vezes conservava um olhar distante e feições mais sérias, o que deixava Clarice sem saber como agir. Ele sempre ficava muito pensativo quando não falava e o silêncio tétrico, rompido somente pelo motor do carro, tomava conta do casal.
- Vito, meu amor... o que foi ? Sempre que venho ver a Sofia, você fica quieto na volta para casa. Preciso saber o que tanto te atormenta!
E ainda assim, ele não emitiu som algum.
Chegaram em casa, ele parou o carro, pegou a bolsa de Clarice no banco de trás e ficou esperando-a descer. Ela foi caminhando em direção a entrada, ao lado do marido.
A porta se abriu, os dois entraram, e Vito a fechou firmemente.
- Michael.
Clarice tirava o cachecol e seu bonito chapéu azul marinho quando ouviu Vito pronunciar o nome do irmão. Ficou sem entender e, então perguntou enquanto colocava suas luvas sobre o aparador:
- Michael? O que tem ele, Vito? - fitou o rosto cabisbaixo do marido que ainda estava com a mão na maçaneta da porta - Vito!
- Ah, Clarice! - exclamou o marido, levantando a cabeça e indo abraçá-la com força e os olhos fechados.
- O que foi, meu Deus? O que aconteceu? - ela perguntava sem entender muita coisa.
Vito então a levou à sala e enquanto se servia de uma dose de whisky, foi dizendo:
- Não gosto como ele olha para você. Sempre parece que ele tem alguma coisa em mente, que se relaciona a você. Você, você, você.
Clarice, ainda atônita com a declaração do marido, tentava balbuciar alguma coisa para acalmá-lo:
- Vito.. mas..eu não..
Ela respirou fundo e se levantou. Foi em direção a Vito e pegando a mão esquerda dele, pediu:
- Olhe pra mim.
Ele levantou o rosto e fitou os olhos de Clarice.
- Sabe porque você e eu usamos essas alianças? Han? Porque nos amamos, Vito. Não há parentes, não há Sofia, nem Michael, nem ninguém que possa mudar isso.
Sem tirar os olhos dos do marido, Clarice colocou a mão dele em sua barriga.
- Sente? Consegue sentir essa vidinha aqui dentro?
Vito assentiu com a cabeça e respirou fundo. Segurou o rosto da mulher com delicadeza e beijou-lhe o todo o rosto.
- Não sei o que aconteceria se eu te perdesse.
Clarice, com os olhos fechados, sentindo os beijos do marido, abriu um sorriso leve e inocente. Vito encostou sua testa na dela e ficaram se olhando daquela distância.
- Eu simplesmente não sei amar ninguém sem ser você.
- Eu te amo, Vito. Te amo - e ela o beijou com todo o amor que possuía mais o que ele lhe dava, e ele a abraçou por trás, acomodando sua cabeça no ombro esquerdo dela, sentindo o cheiro de seu perfume.
Os dois foram assim pela sala, subindo as escadas e chegando até o quarto. Lá, ele a deitou na cama, tirou seus sapatos e delicadamente passou sua mão por toda a pele dela.
Vito era um homem muito passional. Era firme em suas escolhas, decisões, e atitudes, mas era movido pela paixão. Com Clarice, não era diferente. Ele era completamente apaixonado por ela, mas o medo de perdê-la e o seu ciúme só não o consumiam porque ela mesma o fazia botar os pés no chão.



Para Sofia e Michael

Sofia trancou a longa porta de mármore, e subiu para o quarto. Arrumou as colchas da cama, e também os travesseiros, na posição que Michael gostava. Trocou seu vestido por um lindo baby-doll longo, dourado. E colocou um roby para transitar pelos corredores. Saiu do quarto e foi em direção ao escritório, onde Michael estava.
- Michael? Eu já estou indo dormir, você não vem? – e adentrou a enorme sala, carregada de papéis e lustres, onde ele tragava um charuto na janela.
- Já estou indo, Sofia. Só vou esperar acabar meu charuto. – Sofia surgia por trás de Michael, e o amaciava os ombros.
- Me desculpe por hoje. – disse ela, baixinho.
- Não fale mais disso, por favor. – e ele se virou, jogou o charuto pela janela e a brindou com um longo beijo, massageando sua nuca, enquanto as mãos suaves e pequenas de Sofia repousavam sobre seu peito.
Os dois andaram em direção ao quarto abraçando-se e trocando carinhos, deslizando as mãos pelos corpos amados, querendo sentir os batimentos cardíacos um do outro, pele com pele.
E se amaram intensamente... Michael era tão carinhoso, que Sofia quase nem se esforçava, ficava só no deleite de seus braços, sendo velada por um homem forte, por dentro e por fora. Os lençóis eram de linho, e a cama ficou pequena. Dormiram no gozo quase que eterno de um amor que rompe as fronteiras das palavras, dos sussurros, dos gemidos... Dormiram na esperança de um novo acordar.
Mas uma hora o sol teria de invadir – mesmo que pelas fendas – aquelas cortinas de veludo vermelho com bordados dourados. Michael se levanta, coloca um roupão atoalhado vermelho, e anda pelo quarto, sorridente. Aproxima-se de Sofia, e a beija delicadamente, acordando-a.
- Bom dia, meu amor! – diz ela, brandamente, enquanto enche Michael de beijos – Você não vai trabalhar hoje, vai?
- Preciso... Tenho muitos negócios a tratar no escritório central e Vito já está a me esperar, meu bem.
- Hum... Você poderia ao menos tomar café comigo? – disse Sofia, gargalhando enquanto mordia o queixo de Michael.
- Posso. Claro que posso. – sorriu ele.
Desceram as escadas até a cozinha, onde a tia de Michael servia o café.
- Bom dia, tia Margarida!
- Buonno, Michael!
E eram quitutes que rolavam de um lado a outro da mesa, um servindo a boca do outro, e complementando tudo isso com beijos e carinhos. O suco não tinha gosto. Eles preferiam a doce saliva quente, que os lembrava da noite que tinham passado e do resto dos dias que iriam passar. Não haveria mais dor. Nem culpa. Eles decidiram ir adiante sem olhar para trás. Mesmo que Michael continuasse olhando para os lados...

Saturday, May 2, 2009

Sounds of silence .

E ao olhar aquele sorriso, o barulho da xícara no pires foi inevitável. A xícara também estava embasbacada com aquela beleza, com aquele rostinho redondo, e com aquele ventre robusto, com uma criança linda dentro. Mas Sofia lembrava –se bem de toda a sua falta de atenção ao vê-la passar correndo pela porta de casa. Ficava ali durante horas, observando... Aqueles olhos azuis, ah! Pareciam os seus... E aqueles sapatinhos de verniz combinando perfeitamente com o vestido de seda pura floral? Clarice não era qualquer criança... Mas era o anjo de Sofia. Mesmo quando os dias se fazem frios demais na Sicília... Mesmo quando Sofia os faz frios... Ela vem, e rabisca um enorme e intenso sol. São como irmãs. E se o sangue não o fez, elas o fizeram.
- Sofia! – sorriu, chamando atenção em meio às lembranças.
- Mas o que é que você quer? – respondeu Sofia, assustada, com a cara mais marrenta do mundo.
- Ele chutou! – e aquele sorriso doce se abriu tão denso pros seus olhos ainda amargos, que não hesitou, e tocou aquela esfera cheia de amor que era a sua barriga. Seus olhos se encheram d’água. Vito estava dando seus primeiros sinais de vida...
- Ele não vai demorar muito pra nascer...
E ela acariciava sua pele por cima do vestido claro e com o suave cheiro de lavanda. Aquilo lhe fazia lembrar de sua mãe, de sua infância, de Sofia.
- Venha cá! - exclamou Clarice - Venha sentir ele chutando!
Sofia, meio encabulada, sentou-se ao lado da amiga e posicionou sua mão na barriga dela. Recebendo o gentil toque das mãos brancas de Clarice, viajou a outra dimensão, imaginando como seria aquele bebê.
- Está sentindo? - sorria vividamente
- Estou... estou! - e Sofia abriu um largo sorriso apertando a mão da amiga.
Ela então, voltou ao seu lugar e no exato momento em que encostou seus lábios pintados de vermelho na xícara de chá, pensou na sua vida e na vida com Clarice.
- Você anda muito pensativa, Sofia - comentou Clarice.
A outra, então, levantando os olhos, tirou a xícara da boca e ainda segurando-a em seus dedos bem desenhados, disse:
- Ando lembrando muito de quando éramos crianças. Ah, Clarice ! Você é minha amiga de infância... temos uma vida juntas. Isso é surreal !
Clarice a chamou novamente para sentar-se ao seu lado.
- Você é minha melhor amiga. Desde sempre. Para sempre ! - disse ela com os olhos brilhantes e com o sorriso radiante.
Um longo abraço era tudo que tinham naquele momento. Sofia pensava em Vito como se fosse seu próprio filho. O filho que ela ainda não teve. O filho que ela poderia ter tido se Michael não fosse tão cruel. Se ela não tivesse sido tão cruel. Eis que Sofia põe-se a chorar diante das xícaras e do terno abraço de Clarice.
- Sofia? Meu bem? – a voz grossa percorre a sala, e faz com que Sofia enxugue as lágrimas com a manga do cardigã vermelho. Era Michael, que chegava sedento pela mulher. O mesmo Michael que lhe dava flores, que lhe esbofeteava, que lhe dava prazer, e que lhe dava amor. O Michael com quem havia se casado, com quem prometeu viver até o fim de seus dias.
- Michael? – ela olhava com nervosismo em direção a porta. E ele apareceu, largou as chaves e a arma protegida por um estojo de couro em cima da mesa e a deu um beijo terno, daqueles em que os olhos se fecham e os lábios se procuram, delicadamente.
Michael deu um beijo na testa de Clarice, e pegou em sua barriga, com os olhos brilhantes.
- E como vai esse nosso garotão? - sorriu, e olhou para Sofia, como quem cobra algo.
- Ah, vai bem! Estava há alguns minutos dando uns chutes na madrinha. Mas com o padrinho chegando, se aquietou.
- Ele deve ter sentido que eu não brinco em serviço! – gargalhou baixinho – Sofia, você me prepara um banho depois? Temos muito o que conversar...
- Eu acho que vou até embora para que a conversa de vocês tenha uma melhor fluência! – exclamou Clarice, cínica, segurando o riso.
- Não precisa, querida. Daqui a pouco Vito chega de viagem, e passa para te apanhar. Aí os assuntos fluem em diferentes casas. – e o riso deu-se explícito entre Michael, Sofia e Clarice.
- Ah, meu bem, Clarice já escolheu o nome do bebê.
- Já? – Michael olhou para Sofia, tentando se fazer de surpreso.
- Já! Vai ser o nome do pai. – respondeu Clarice.
- Ah, mas que maravilha! Quando meu filho nascer, quero que tenha o meu nome também. – disse Michael, olhando bem nos olhos de Sofia, que tratou de desatar o nó de sua gravata enquanto conversavam.
Percebendo o notável desconforto da amiga, Clarice se colocou a arrumar a bolsa, colocar seu cachecol e seu chapéu.
- Vou esperar o Vito na ante-sala, se vocês não se importam - disse com o rosto terno e pedinte.
- Está tudo bem, querida - Michael deu um sorriso e veio novamento beijar a testa de Clarice.
- Eu te acompanho até lá - disse Sofia.
Clarice enlaçou seu braço no da amiga e comentou baixinho, enquanto as duas caminhavam pelo corredor:
- Essa situação anda ficando cada vez mais complicada, não acha ?
- Acho - Sofia disse pausadamente - Claro que acho. Mas tenho medo, Clarice.
- De quê ?
As duas pararam em frente ao sofá embaixo da janela na ante-sala, perto da entrada.
- Não se lembra de tudo que aconteceu há 1 ano atrás ? - perguntou Sofia parando e distanciando seu olhar ao nada.
- É claro que me lembro - Clarice falou engasgada enquanto abotoava as luvas - Mas tudo vai ficar bem.
Procurando os olhos da amiga, ela levou a mão ao rosto de Sofia, levantando-o.
- Ei... não fique assim.
Uma lágrima rolou dos verdes olhos cerrados de Sofia.
- Oh, Deus... - e Clarice a abraçou o mais forte que pôde. Sofia agarrou-se no abraço, e ali, por um momento, sentiu-se ancorada. Chorou mais um pouco e Clarice, tirando um lenço da bolsa, foi enxugando seu rosto.
- Michael te ama. E o filho de vocês será o fruto desse amor, Sofia... Ele vai saber dar tempo ao tempo. É essa estupidez de querer apressar tudo que o faz errar tanto.
Enquanto Clarice pronunciava suas últimas palavras, a luz dos faróis do carro de Vito invadia a ante-sala.
- Ele chegou... – disse Sofia, em tom de desespero.
- Oh, ele chegou! – respondeu Clarice, no mesmo tom, só que com uma pitada de felicidade.
Vito entrou, se agarrou à barriga da esposa, e a cobriu de beijos. Resultado de quatro longos meses de viagem mundo à fora. Resultado de quatro longos meses em que Clarice chorou de saudade e medo. Medo de nunca mais ver Vito, medo de que ele pudesse ser executado antes que ela o visse.
- Minha linda! – exclamou Vito com os olhos cheios d’água – Mas que saudade de você! E do nosso filho!
- Mas agora estamos todos aqui, meu amor. Graças a Deus! – e os dois se entrelaçaram num duradouro beijo.
- Vito! – disse Michael, ao vir com a gravata recém-tirada nas mãos, sorrindo, contente com a volta do irmão. E eles se abraçaram como costumavam fazer, de um jeito peculiar, mas amoroso. Porque os leves tapas nas costas significavam muito mais que gestos. Eram gestos de amor e de carinho entre irmãos que se viam desde o acordar, até o fim do dia. De irmãos que compartilhavam sua vida com duas mulheres, duas amigas, duas irmãs.
Mas sempre viveram momentos diferentes, apesar da proximidade. Michael e Vito, agora, mais do que nunca, viviam momentos diferentes.
- Olá, Vito. – se aproximou Sofia, sorrindo, e abraçando-o, notando que a paz estava quase que reestabelecida. Com Vito de volta, Michael ficaria um pouco mais equilibrado, porque ele era sua consciência, seu porto.
- Olá, querida. Como está? – e ele a olhou nos olhos de um jeito como quem sabe que nada está bem.
- Ah, eu e Michael estamos bem...
- Se bem que não era pra ser só dois, não é? – retrucou Michael, enquanto acendia seu charuto, com um sorriso de canto de boca.
- Veja bem, Michael, era para ser três, se você não tivesse escolhido outros meios, e você sabe disso. – disse Sofia, enquanto se deslocava para o quarto, a fim de buscar alguns pertences de Clarice, que por ventura tenham sido esquecidos.
E ele a trancou. A segurou pelo braço e a olhou com um olhar tão profundo... Um olhar de dó, e de dor também. De perda.
E Clarice e Vito foram embora para casa, sem nada a declarar. Entraram no carro e partiram na direção dos portões negros e do muro de homens armados, a fim de sair da Fortaleza Corleone.


[continua]